Influenza dispara em Cuiabá e presidente da Comissão de Saúde Pública do CRMV-MT alerta: vírus também é questão veterinária
5 de maio de 2025 – Atualizado em 05/05/2025 – 11:45am
“Sem vigilância animal, não existe prevenção real em saúde pública”
Médico-veterinário Arthur Octávio Nolasco Monteiro, presidente da Comissão Estadual de Saúde Pública do CRMV-MT, defende que a Influenza não é só um problema médico: é também veterinário, ambiental e de interesse coletivo.
O relatório mais recente da Vigilância Epidemiológica de Cuiabá revela um cenário preocupante: enquanto os casos de Covid-19 recuam, os de Influenza A e B dispararam entre janeiro e abril deste ano. O salto de 455% nos registros entre residentes, somado a 58 internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), reacende o alerta sobre doenças respiratórias com potencial de crise sanitária.
Mas há um ponto que passa despercebido pela maioria: o papel dos animais como reservatórios e vetores silenciosos desses vírus. Para o médico-veterinário Arthur Octávio Nolasco Monteiro, presidente da Comissão Estadual de Saúde Pública do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Mato Grosso (CRMV-MT), o aumento de casos humanos de Influenza precisa ser lido também sob a ótica da vigilância animal. Em entrevista exclusiva, ele explica por que a atuação do médico-veterinário é indispensável em um mundo que convive com ameaças zoonóticas cada vez mais complexas.
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Os casos de Influenza cresceram de forma significativa em Cuiabá. Por que a Medicina Veterinária entra nesse debate?
Porque a origem da maior parte das pandemias de Influenza é zoonótica. O vírus Influenza A, por exemplo, circula entre aves, suínos e outros mamíferos antes de atingir os humanos. A nossa preocupação é que esse dado — que deveria ser tratado como central — muitas vezes é ignorado nos protocolos de saúde pública. O veterinário é o profissional habilitado a identificar esses ciclos em animais, e isso nos dá uma chance de conter surtos antes que eles cruzem a fronteira para a população humana.
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É comum ouvir que a Medicina Veterinária está restrita a pets ou à produção animal. Isso ainda é um obstáculo?
Sem dúvida. Existe um reducionismo histórico que associa o veterinário ao cuidado clínico de cães e gatos, ou à pecuária produtiva. Mas a legislação brasileira já reconhece o médico-veterinário como profissional da saúde desde 1968. E mais: ele é responsável, por exemplo, pela vigilância de zoonoses, inspeção de alimentos de origem animal, controle de vetores e avaliação de riscos sanitários ambientais. Essa formação multidisciplinar é uma vantagem estratégica — principalmente quando falamos em vírus com capacidade de transbordamento entre espécies, como o Influenza.
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A comunidade médica entende esse papel hoje? Ou ainda há resistência?
A compreensão tem avançado, mas ainda é desigual. Onde há integração intersetorial bem-feita, a atuação do veterinário já é valorizada — como em centros de zoonoses, redes de saúde ambiental, programas de vigilância integrada. Mas, em muitas instâncias, ainda prevalece uma visão segmentada. E isso custa caro. A Influenza, por exemplo, é um vírus com genoma segmentado, o que favorece mutações e recombinações. Ignorar sua origem animal é um risco que nenhum gestor público deveria correr.
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O relatório municipal de Cuiabá mostra também 5 mortes por Influenza e dezenas de internações por SRAG. Que tipo de resposta o CRMV-MT propõe?
Nós defendemos uma abordagem baseada em vigilância ampliada e ação interprofissional. Isso inclui:
• Protocolos de notificação compulsória de sinais respiratórios em animais, especialmente aves e suínos;
• Inclusão do médico-veterinário nas equipes de vigilância epidemiológica e saúde da família;
• Criação de grupos técnicos interinstitucionais para gestão de zoonoses respiratórias;
• Fortalecimento das ações educativas sobre biossegurança e identificação precoce de sintomas em humanos e animais;
• Apoio à vigilância genômica viral em fauna silvestre, por meio de parcerias com universidades e laboratórios públicos.
Essas medidas não são teóricas: elas constam em diretrizes do próprio Ministério da Saúde e estão alinhadas com o Plano Nacional de Preparação para Pandemias de Influenza.
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O senhor citou a vigilância genômica em fauna. Isso já é feito no Brasil?
Sim, mas ainda de forma incipiente. Existe uma subnotificação estrutural em doenças emergentes e reemergentes que envolvem fauna silvestre, doméstica ou sinantrópica. Muitos casos nem chegam a ser investigados. A maioria das epizootias em território nacional continua sem diagnóstico definitivo. O que propomos é utilizar sistemas como o SISS-Geo (de Saúde Silvestre), SINVISA (de Vigilância Ambiental) e cruzar esses dados com os do SINAN e SISBRAVET. Quando há correlação epidemiológica — mesmo que ainda sem causalidade comprovada — já é motivo para acionar o alerta e antecipar estratégias.
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E como incluir o médico-veterinário nas estruturas públicas de saúde? Há mecanismos legais para isso?
Sim. A legislação permite e, mais do que isso, recomenda. A Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS) e o próprio SUS já preveem a participação de médicos-veterinários. O que falta muitas vezes é regulamentação local: concursos específicos, criação de cargos técnicos, inclusão nos planos de contingência, valorização da formação em zoonoses e biossegurança. Um município que ignora esse profissional está abrindo mão de uma camada de proteção extremamente valiosa.
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Diante da emergência sanitária atual, qual seria sua mensagem às autoridades de saúde?
Que comecem a observar os dados com uma lente mais ampla. O aumento dos casos de Influenza não é um evento isolado: é uma manifestação de algo maior, que pode envolver desequilíbrio ambiental, circulação viral entre espécies e falhas na vigilância integrada. A Medicina Veterinária tem competência técnica e legal para contribuir com soluções. Negar isso é caminhar para trás.
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E à sociedade?
Que compreenda que saúde pública não se faz com muros entre profissões. O veterinário não é coadjuvante nesse processo — é parte ativa da resposta. Um surto pode começar num aviário, mas terminar num leito de UTI. Conectar esses pontos antes da crise é o que salva vidas. E para isso, precisamos ouvir quem está ao lado dos animais e entende a linguagem invisível das zoonoses.